Parashat Devarim

Julgando com justiça

Avraham, um jovem estudante de Torá, mudou-se para uma Yeshivá de Israel onde iria estudar. Logo no primeiro dia, na reza da manhã, ele percebeu que um dos alunos da Yeshivá começou a tirar seu Tefilin antes do final da reza e depois correu em direção ao refeitório. Avraham ficou irritado com aquela demonstração de descaso com a Tefilá (reza). Ficou imaginando que o rapaz era alguém sem autocontrole, cujo desejo pela comida não o permitia esperar até o final da Tefilá, como os outros alunos.
 
Avraham terminou sua Tefilá, pensando em como ele era Tzadik (Justo) e como aquele outro aluno era egoísta e descontrolado. Ele tirou seu Tefilin e foi para o refeitório tomar o seu café da manhã. Foi então que Avraham viu o rapaz que havia saído antes do final da Tefilá. Ele estava dentro da cozinha, vestindo um avental e voluntariamente ajudando a preparar o café da manhã dos outros alunos da Yeshivá. Depois Avraham soube que todos os dias aquele rapaz terminava sua Tefilá correndo, justamente para poder fazer Chessed (bondade) com os outros alunos.
 
Avraham entendeu que havia julgado aquele rapaz de forma precipitada. Pois na verdade, o rapaz era uma pessoa muito altruísta, enquanto na verdade o verdadeiro egoísta era ele mesmo. 
 


 
Na Parashá desta semana, Devarim, Moshé começou a relembrar muitos dos momentos vividos pelo povo judeu durante os 40 anos no deserto, e criticou duramente o povo por muitos dos graves erros cometidos. E logo depois do Shabat começa Tishá Be Av, o dia mais triste do ano, no qual choramos ao relembrar as grandes tragédias que recaíram sobre o povo judeu durante a nossa história, como a destruição dos dois Templos Sagrados e a expulsão dos judeus da Espanha e Portugal em 1492. Em geral, Tishá Be Av cai junto com a Parashá Devarim. Qual é a conexão entre os dois?
 
Um dos pontos que Moshé relembrou foi como era pesado para ele julgar sozinho todo o povo, e a solução sugerida por seu sogro, Itró, de apontar pessoas corretas e íntegras do povo como juízes, que o auxiliariam nos casos mais simples. Moshé também relembrou as instruções que ele passou aos juízes escolhidos: “Escutem entre os seus irmãos, e julguem com justiça” (Devarim 1:16). Mas estas palavras de Moshé precisam de explicação, pois por que dizer aos juízes que eles deviam escutar as partes envolvidas antes de dar o veredicto final, se era algo óbvio? Além disso, por que o versículo diz “escutem entre os seus irmãos” e não simplesmente “escutem seus irmãos”? E finalmente, por que era necessário Moshé ressaltar aos juízes que eles deveriam sempre julgar com justiça e retidão, se o papel de um juiz é justamente ser alguém justo e reto para definir quem tem a razão?
 
Rashi (França, 1040 – 1105) explica que Moshé estava exigindo dos juízes que eles fossem extremamente cuidadosos em cada julgamento, e mesmo que vários casos similares já tivessem sido julgados por aquele tribunal, eles não deveriam julgar de forma precipitada. Esta é a fonte da primeira Mishá do Pirkei Avót (Ética dos Patriarcas): “Sejam cautelosos no julgamento” (1:1). Aparentemente esta Mishná nos ensina que cada situação tem nuances que podem afetar e resultado do julgamento, e por isso cada caso deve ser analisado com cuidado.
 
Apesar deste ensinamento de Moshé também se aplicar para casos criminais, ele está escrito em um contexto de casos civis, pois foi utilizada a linguagem “entre os seus irmãos”, isto é, em casos onde há algum tipo de disputa. Porém, o ensinamento de “sejam cautelosos no julgamento” deveria ter sido ensinado em um caso criminal. Um veredicto equivocado em um caso civil, como a disputa por um bem material, pode ser facilmente revertido se o Beit Din (Tribunal Rabínico) identificar o erro. Mas um erro do Beit Din no julgamento de um crime pode ter consequências muito mais graves e, portanto, neste caso o Beit Din deveria ser muito mais cuidadoso. Então por que o ensinamento é em um contexto civil e não criminal? E, além disso, se é tão importante ser uma pessoa ponderada e cautelosa nos nossos atos, por que a Torá não aplica esta exigência também a outros profissionais, como os médicos, cuja falta de cautela pode resultar na perda de uma vida?
 
Explica o Rav Yohanan Zweig que, no mundo empresarial, a grande maioria das disputas civis não ocorre entre indivíduos que sempre mantiveram um relacionamento conflituoso, pois neste caso as duas partes tentam deixar bem claro quais serão as medidas tomadas caso surjam situações indesejadas e tomam as precauções necessárias para evitar maus entendidos. As disputas costumam ocorrer justamente quando há um elemento de confiança entre as partes, e por causa desta confiança, muitos detalhes técnicos, como recibos e contratos, acabam sendo deixados de lado, abrindo brechas para desentendimentos e dúvidas.
Quando a confiança inicial é quebrada e inicia-se uma disputa, cada uma das partes tem uma percepção subjetiva da realidade, e por isso cada um percebe os fatos de acordo com as suas próprias predisposições e tendências. Nos casos em que esta disputa não pode ser resolvida sem a ajuda do Beit Din, então os juízes devem estar cientes que cada pessoa está aderindo às suas percepções distorcidas e está completamente relutante em enxergar a percepção da outra parte envolvida, fato que dificulta a reconciliação. E pelo fato de nenhuma das duas percepções representarem a realidade objetiva, então é responsabilidade dos juízes verificar e encontrar a verdade objetiva a partir das duas opiniões subjetivas dos litigantes.
 
Este conceito nos ajuda a entender um intrigante ensinamento dos nossos sábios: “Quando os litigantes estiverem diante de você, considere ambos como culpados, mas quando eles partirem de você, considere ambos como inocentes” (Pirkei Avót 1:8). O Pirkei Avót não está indo contra o conceito de que a pessoa deve ser considerada inocente até que provem a sua culpa. Mas no momento da argumentação, o juiz deve ver os litigantes como se fossem culpados, pois certamente cada um deles está apresentando a sua percepção distorcida dos fatos, e é obrigação do juiz não acreditar cegamente nas palavras de nenhum dos litigantes sem verificá-las bem. É justamente isto o que Moshé estava transmitindo aos juízes. Um juiz tem que tomar muito cuidado para julgar de maneira correta. Nunca dois casos são iguais, pois cada pessoa entende as coisas de acordo com a sua própria perspectiva, e determinar a verdade objetiva a partir das argumentações subjetivas dos litigantes exige muita cautela. Por isso os casos civis, onde há disputas entre dois litigantes, exige mais cuidado até mesmo do que casos criminais.
 
Por que a Torá se preocupou somente em ensinar este conceito aos juízes e não aos médicos? Pois ao contrário do juiz, o maior colaborador do médico para chegar a um diagnóstico correto e preciso é o próprio paciente. Baseado nas reclamações do paciente, nos sintomas e nas dores que ele relata, o médico consegue chegar ao diagnóstico da enfermidade. Já os litigantes têm um relacionamento conflituoso com o juiz, pois o juiz está buscando a verdade objetiva, enquanto os litigantes estão oferecendo uma percepção subjetiva da realidade. Por isso é um grande feito quando um juiz consegue ter sucesso e se proteger das enganações dos litigantes. É por causa desta grande dificuldade que a Torá sentiu a necessidade de ordenar aos juízes que eles se protejam, na busca pela verdade, contra as enganações e visões subjetivas do caso.
 
Qual a conexão com Tishá Be Av? Esquecemos que não apenas os juízes fazem julgamentos. Cada um de nós, no nosso dia a dia, também está constantemente julgando as outras pessoas. E da mesma maneira que os juízes devem ser cautelosos e ponderados nos julgamentos de disputas civis ou na elucidação de casos criminais, nós também devemos ser muito cuidadosos com a maneira como julgamos os outros. Normalmente somos muito apressados em julgar e rotular as pessoas de maneira negativa, por pequenas atitudes que elas fizeram que pareciam erradas aos nossos olhos.
 
Ensinam os nossos sábios que o Primeiro Templo Sagrado foi destruído por que o povo judeu estava praticando as três transgressões mais graves: idolatria, relações ilícitas e assassinato. Mas após a destruição do Templo e o exílio do povo judeu, eles se arrependeram e consertaram seus graves erros, e em 70 anos o Templo foi reconstruído. Porém, o Segundo Templo Sagrado foi destruído pelo ódio gratuito e por causa do Lashon Hará (maledicência) que havia dentro do povo judeu. Infelizmente já se passaram mais de dois mil anos e não tivemos ainda o mérito de reconstruir o Templo Sagrado. Isto significa que, mesmo após tanto tempo, ainda não conseguimos consertar estes erros tão graves.
 
Por que é tão difícil não falar Lashon Hará? Pois o Lashon Hará é uma consequência direta de não julgarmos as pessoas de forma positiva e favorável. Falamos Lashon Hará porque consideramos que nós estamos sempre certos e aqueles que discordam de nós estão sempre errados. Falamos Lashon Hará pois consideramos que a nossa forma de viver é a perfeita e ideal, e portanto todo aquele que é mais rigoroso do que nós é visto como um fanático, enquanto aquele que é menos rigoroso do que nós é desleixado. Falamos Lashon Hará pois não damos aos outros o benefício da dúvida, da mesma maneira que gostaríamos que os outros dessem quando nós cometemos algum erro. Por exemplo, quando alguém chega atrasado a uma reunião, imediatamente é visto como um irresponsável, enquanto quando nós chegamos atrasados, esperamos que as pessoas sejam compreensivas e entendam que o trânsito estava caótico.
 
Pensamos que tragédias somente podem ocorrer quando juízes erram nos julgamentos de casos criminais. Mas Tishá Be Av é um lembrete constante de que os erros de julgamento no nosso dia a dia podem ser ainda mais trágicos.

SHABAT SHALOM                                           
 
Rav Efraim Birbojm

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