Parashat Bamidbar

Paz entre o material e o espiritual

O Rabi Elimelech de Lisensk era visto por todos como um homem muito justo e santo, com muito temor a D'us. Certa vez, um jovem quis visitar o Rabi Elimelech para observá-lo e aprender um pouco com a sua santidade. Porém, assim que chegou, se deparou com o Rabi Elimelech comendo uma maça. Aquela cena incomodou o jovem, pois a última coisa que ele esperava ver era aquele rabino tão elevado envolvido com atos mundanos. Ele ficou tão incomodado que o Rabi Elimelech conseguiu perceber isso em seu rosto. Então o Rebe Elimelech questionou o rapaz se estava tudo bem. Pego de surpresa, o jovem rapaz ficou envergonhado e confessou:
 
– Rabi Elimelech, vou ser muito sincero. Vim aqui para ver a sua santidade, mas quando cheguei você estava comendo uma maça, um simples ato mundano. Então eu me perguntei qual é a diferença entre eu e você…
 
Quando o Rabi Elimelech escutou o questionamento que incomodava o jovem rapaz, abriu um sorriso e apontou para a travessa de frutas que estava sobre a mesa. Ele perguntou ao rapaz se, quando tinha vontade de comer uma maça, ele fazia Brachá (bênção) antes de comê-la. O jovem rapaz não entendeu exatamente a intenção do rabino com aquela pergunta e respondeu que sempre fazia Brachót antes de ter proveito de qualquer alimento. O Rabi Elimelech então explicou:
 
– Todos os dias de manhã, quando eu acordo e faço Tefilá (reza), eu me conecto com D'us de uma maneira tão intensa que sinto a necessidade de abençoar o Seu Nome Sagrado. Porém, se eu simplesmente pronunciasse o Nome de D'us, seria uma grave transgressão. Então eu pego uma maça e faço uma Brachá, apenas para poder abençoar o Nome de D'us. Quando você acorda, você sente fome e quer comer uma maça. Porém, como é proibido ter proveito do mundo material sem pedir permissão para D'us, então antes de comer você pronuncia uma Brachá. Esta é a diferença entre eu e você…
 
Enquanto o jovem utilizava a maça apenas para satisfazer seus próprios desejos, o Rabi Elimelech usava a maça como um meio para conectar o material com o espiritual.
 

Nesta semana lemos a Parashat Bamidbar (literalmente “No deserto”), que começa com a contagem do povo judeu. É o início do quarto livro da Torá, Bamidbar, que descreve muitos acontecimentos importantes dos 40 anos em que o povo judeu permaneceu no deserto, alguns que inclusive mudaram nossa história. Mas nada foi tão marcante e significativo para o povo judeu quanto a entrega da Torá no Monte Sinai. E no final do Shabat começamos a reviver a Festa de Shavuót, a data que marca justamente o aniversário da entrega da Torá ao povo judeu. Todas as Festas têm símbolos físicos que as identificam. Por exemplo, Sucót tem a Sucá e os Arba Minim (4 espécies), enquanto Pessach tem a Matzá. Mas qual é o símbolo da festa de Shavuót? Na realidade, como Shavuót representa a entrega da Torá, que é infinita e ilimitada, ela não pode ser representada por nenhum objeto físico.
 
Entretanto, há um ensinamento do Talmud que parece ser contraditório com o conceito da Festa de Shavuót ser tão espiritual. O Talmud (Pessachim 68b) traz uma divergência entre o Rebi Yehoshua e o Rebi Eliezer em relação a como uma pessoa deve se comportar nos Yamim Tovim. Rebi Yehoshua opina que a pessoa deve dedicar parte do seu tempo em seu desenvolvimento espiritual, mas o resto do tempo ela pode se dedicar a prazeres físicos. Já o Rabi Eliezer opina que é impossível a pessoa estar envolvida em espiritualidade e materialismo ao mesmo tempo, e por isso ela deve escolher focar apenas em um deles. A implicação prática da opinião do Rabi Eliezer é que no Yom Tov a pessoa deveria focar apenas em atividades espirituais, como estudar Torá e fazer Tefilá, e não se envolver com prazeres físicos, como comer e beber. Entretanto, o Talmud ressalta que em relação a Shavuót até mesmo o Rebi Eliezer concorda que a pessoa também deveria se envolver com comida e bebida. A razão trazida pelo Talmud é que neste dia a Torá foi entregue. Porém, se a festa de Shavuót é tão espiritual a ponto de não ter nem mesmo um símbolo físico que a representa, então por que justamente neste dia o Rabi Eliezer concorda que devemos nos ocupar também com prazeres físicos? E o motivo apontado pelo Talmud, “pois neste dia a Torá foi entregue”, torna o entendimento ainda mais difícil. Este motivo pareceria mais apropriado se o Rabi Eliezer opinasse o contrário, isto é, que principalmente em Shavuót, um dia tão Sagrado e elevado, a pessoa deveria se dedicar completamente a atividades espirituais. Como entender a opinião aparentemente contraditória do Rabi Eliezer e o estranho motivo trazido pelo Talmud? Qual é a conexão entre a utilização de prazeres do mundo material e a Festa de Shavuót?
 
Explica o Rav Yehonasan Gefen que a chave para o entendimento destas questões é um ensinamento do Talmud (Shabat 88b), que descreve o que ocorreu após a Revelação de D'us no Monte Sinai. Moshé subiu ao Céu para aprender toda a Torá diretamente de D'us. Porém, os anjos se incomodaram com o atrevimento de um mero ser humano ter aparecido nas esferas celestiais superiores. Eles argumentaram que o ser humano não era merecedor de receber a Torá por causa de sua natureza física baixa, e que eram os anjos que deveriam receber a Torá. D'us instruiu Moshé a refutar o argumento dos anjos, e ele fez isso citando diversos aspectos e leis da Torá que são claramente voltados para os seres humanos. Por exemplo, a Torá nos proíbe de fazermos Melachót (algumas categorias de trabalho) no Shabat, proibição que obviamente não se aplica aos anjos, que não fazem Melachót em nenhum momento. O Talmud conclui afirmando que tanto D'us quanto os anjos aceitaram os argumentos de Moshé.

Porém, este ensinamento do Talmud precisa ser esclarecido. Como entender esta “vontade” dos anjos de receberem a Torá ao invés dos seres humanos? Certamente os anjos estavam cientes do conteúdo da Torá, e seguramente já haviam percebido que a Torá estava claramente direcionada aos seres humanos e não aos seres espirituais. Então como pode ser que eles esperavam receber a Torá?  
 
O Rav Chaim Friedlander zt”l (Alemanha, 1923 – Israel, 1986) explica que a Torá pode ser entendida em muitos níveis, e o simples entendimento com o qual nos relacionamos com a Torá é apenas uma das formas de entendimento dela. Isto significa que a Torá também se aplica aos anjos em seu nível de existência. Por exemplo, certamente há um paralelo espiritual para a proibição de fazer Melachót no Shabat que se aplica aos anjos, e o mesmo vale para cada palavra da Torá. O que os anjos estavam argumentando é que a Torá deveria permanecer no Céu, onde eles poderiam aprendê-la em um nível muito mais profundo, não “manchada” pelo mundo material.
 
Mas se este foi o argumento dos anjos, o que Moshé respondeu para eles? Moshé refutou o argumento dos anjos dizendo que a Torá foi feita para ser entendida e aplicada em um nível físico, e não para ficar apenas em um plano espiritual. Ele comprovou seu argumento mencionando diversas Mitzvót que envolvem conceitos materiais, demonstrando que a Torá foi intencionalmente escrita de uma maneira que pudesse ser aplicada a seres físicos. Quando um ser humano consegue superar sua natureza física para cumprir a vontade de D'us, isso causa um aumento da “Honra de D'us” muito maior do que quando um ser puramente espiritual age de acordo com sua natureza. Portanto, Moshé provou para os anjos que, apesar da possibilidade da Torá ser aplicada a qualquer nível espiritual, os anjos não poderiam cumprir as Mitzvót da Torá de maneira que isto trouxesse o máximo nível de honra para D'us.
 
O Talmud nos ensina o quanto o corpo e o materialismo foram importantes no recebimento da Torá no Monte Sinai. O fato dos seres humanos estarem conectados ao mundo material foi, no final das contas, a razão pela qual nós tivemos o mérito de receber a Torá. Isto nos permite entender a conexão entre Shavuót e o foco em prazeres materiais. Shavuót é o dia em que o mundo espiritual e o mundo físico se combinaram no Har Sinai. Nesta ocasião especial e única, a Torá, que é completamente espiritual, foi vestida com roupas físicas para que pudéssemos nos elevar através do seu cumprimento.
 
É por isso que o Rabi Eliezer, apesar de opinar que nos outros Yamim Tovim devemos nos dedicar apenas ao espiritual, concorda que em Shavuót também devemos proporcionar prazeres ao nosso corpo. Em Shavuót nós devemos demonstrar um nível maior de gratidão ao nosso corpo, pois o corpo material foi justamente o que causou a vitória dos argumentos de Moshé sobre os argumentos dos anjos. No dia de Shavuót nós intencionalmente nos envolvemos com o mundo material, e comemos e bebemos com fartura e alegria.
 
Mas então por que o Rabi Eliezer não opina como Rabi Yeoshua, que nos outros Yamim Tovim nós também podemos fazer uma combinação entre o material e o espiritual? Explica o Rav Yehonasan Gefen que aparentemente o Rabi Eliezer opina que um foco excessivo no materialismo causa danos inevitáveis à nossa espiritualidade. Mas em Shavuót é diferente, pois há uma energia especial através da qual o materialismo e a espiritualidade não se contradizem e, ao contrário, podem trabalhar juntos para trazer uma revelação maior da Honra de D'us. O Rav Yehuda Loew zt”l (Polônia, 1525 – República Checa, 1609), mais conhecido como Maharal de Praga, faz uma observação interessante que se conecta com este conceito. Em todos os Yamim Tovim eram oferecidos, como Korbanót (sacrifícios) comunitários, o “Korban Olá” (sacrifício de elevação), cuja característica é o Korban ser completamente queimado sobre o Mizbeach (altar). A única exceção é Shavuót, quando o Korban comunitário era um “Korban Shelamim” (sacrifício de paz), que parte era queimado sobre o altar e parte podia ser consumido por quem havia oferecido o Korban. Isto demonstra que Shavuót é o dia em que há paz entre o material e o espiritual, entre os mundos superiores e os mundos inferiores.
 
Shavuót nos ensina sobre a conexão e a interação positiva entre o corpo e a alma. Esta lição pode ser aplicada para o resto do ano, pois através dos nossos esforços podemos elevar nossas atividades físicas mundanas a um nível espiritual. Mas não é uma tarefa fácil atingir o equilíbrio correto entre o material e o espiritual, pois há sempre o risco de nos envolvermos demasiadamente no mundo material e acabarmos buscando apenas a satisfação do corpo, sem canalizar os prazeres materiais para o lado espiritual. O Rav Avigdor Miller zt”l nos ensina uma maneira prática para evitarmos este tipo de armadilha. Ele sugere que, ao menos uma vez por dia, devemos fazer atos mundanos cotidianos com um esforço consciente de que este ato seja “LeShem Shamaim” (com motivações espirituais). Um exemplo prático é justamente em uma das áreas mais “atrativas”, e justamente por isso mais difíceis de conseguirmos ter proveito com a intenção correta: a área alimentar. Pelo menos uma vez por dia a pessoa deve focar na sua alimentação com a única intenção de manter seu corpo forte e saudável para que ela possa fazer seu Serviço Divino, evitando neste ato comer apenas para satisfazer os seus desejos físicos mais básicos. O Rav Avigdor Miller nos garante que, através de pequenos esforços de autocontrole como este, a pessoa pode se elevar aos poucos e aprender a canalizar suas intenções em todos os atos mundanos, para que o mundo material se transforme, pouco a pouco, em espiritualidade e crescimento.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm

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