Parashat Lech lecha

Fugindo da briga

“Manter financeiramente uma Yeshivá envolve um esforço quase sobre-humano. São muitos gastos, como os salários dos funcionários e a manutenção diária. Um dos maiores gastos é com o aluguel de um local para a Yeshivá, que precisa ser grande o suficiente para abrigar todas as atividades necessárias para o seu bom funcionamento.
 
A Yeshivá de Novardok, na Rússia, como todas as Yeshivót, também passava por estas dificuldades financeiras, mas parecia que a sorte da Yeshivá estava mudando. Um judeu muito rico morreu na Alemanha e deixou em seu testamento um prédio inteiro para a Yeshivá de Novardok. O Rav Yosef Yoizel Horowitz zt”l (Lituânia, 1847 – Ucrânia, 1919), fundador da Yeshivá, rapidamente embarcou em um trem em direção à Alemanha para cuidar pessoalmente do caso.
 
Porém, durante a viagem, o Rav Yosef Yoizel recebeu uma mensagem de que outra Yeshivá também estava enviando uma delegação à Alemanha para competir pelo prédio. Imediatamente ele interrompeu sua viagem e voltou para a Yeshivá, abrindo mão daquela herança. Ele entendeu que a situação facilmente poderia se transformar em uma Machlóket (disputa), e por isso desistiu, mesmo sabendo que estava certo” 
 
O Rav Yosef Yoizel sabia quanto valia a doação de um prédio, mas acima de tudo ele sabia quais eram as consequências destruidoras de uma Machlóket. Ao abrir mão da herança, ele demonstrou a sua grandeza espiritual. 
 


 A Parashat desta semana, Lech Lechá, começa a contar detalhes da vida do nosso primeiro patriarca, Avraham Avinu, focando em especial os 10 testes que ele passou com sucesso. Em um dos testes, Avraham teve que ir com sua esposa Sara e seu sobrinho Lót para o Egito, após uma grande fome na terra de Israel. No Egito eles enriqueceram e voltaram com muitos rebanhos.
 
Porém, algo aconteceu no caminho de volta. Os pastores de Avraham começaram a brigar com os pastores de Lót, pois os pastores de Lót não se importavam em deixar seus animais pastarem sem autorização dos donos dos campos, o que é considerado roubo, enquanto Avraham era muito rigoroso e nunca permitia que seus animais comessem em campos particulares. Os pastores de Avraham começaram a repreender os pastores de Lót, e a discussão começou a se inflamar. Neste momento Avraham tomou uma atitude drástica, sugerindo a Lót que se separassem imediatamente, como está escrito: “E disse Avram para Lót: 'Por favor, que não haja briga entre mim e você, e entre meus pastores e seus pastores, pois nós somos irmãos… Por favor, se separe de mim. Se você for para a esquerda eu irei para a direita, e se você for para a direita então eu irei para a esquerda” (Bereshit 13:8,9). Porém, sabemos que Lót nunca foi uma boa companhia para Avraham. Lót tinha uma péssima índole e traços de caráter muito negativos, o que ele demonstrou ao escolher viver em Sodoma, um lugar de pessoas egoístas e cruéis. Então por que Avraham esperou até este momento para se separar dele?
 
A pergunta fica ainda mais forte ao observarmos o versículo que vem logo após a separação: “E D'us disse para Avram após Lót ter se separado dele” (Bereshit 13:14). As palavras “após Lót ter se separado dele” parecem ser desnecessárias. Segundo Rashi (França, 1040 – 1105), a Torá está nos ensinando que todo o tempo em que Lót estava com Avraham, D'us não se revelou para ele. Isto significa que Avraham não pôde experimentar seu alto nível de profecia, pois a influência negativa de Lót mantinha a Presença Divina afastada dele. O versículo veio ressaltar que apenas quando Lót se afastou de Avraham é que D'us apareceu novamente para ele. Por que Avraham não havia se afastado desde o início de Lót? E após ter aguentado a presença de Lót por tanto tempo, por que ele resolveu justamente neste momento se separar?
 
Responde o Rav Chaim Shmulevitz zt”l (Lituânia, 1902 – Israel, 1979) que do comportamento de Avraham aprendemos duas lições extremamente preciosas. A primeira lição é que certamente Avraham entendeu que Lót “bloqueava” sua espiritualidade. Para resolver o problema bastaria ele se afastar de seu sobrinho. Apesar disso, Avraham continuou próximo de Lót, em um enorme esforço para influenciá-lo de maneira positiva. Daqui aprendemos que ajudar de verdade o próximo implica em estar disposto a até mesmo abrir mão dos nossos ganhos e da nossa própria comodidade.
 
Porém, há uma lição talvez até mais importante. Se Avraham estava tão preocupado com o bem estar de Lót, então por que acabou se separando dele? Pois havia algo que Avraham não podia tolerar: uma Machlóket (disputa). Quando ele viu a briga que se iniciou entre seus pastores e os pastores de Lót, percebeu que a tendência era a briga esquentar cada vez mais, tomando proporções cada vez maiores, e terminaria envolvendo também ele e Lót. Por isso Avraham sentiu a necessidade de imediatamente se separar de Lót. Apesar de saber o prejuízo que seria para Lót, Avraham entendeu que ainda assim era melhor do que permitir que uma Machlóket se iniciasse. Daqui podemos entender um pouco melhor o poder destrutivo de uma Machlóket, e até onde devem ir nossos esforços para evitá-la. A Machlóket é como um fogo, e depois de iniciada, é inevitável que traga brigas, amargura, ódio e Lashon Hará (malediscência).
 
Infelizmente nem sempre aprendemos esta importante lição de Avraham. Atualmente as Machlokót são uma verdadeira praga na nossa sociedade, afetando e dividindo até mesmo famílias e amigos. Quanta destruição é causada nas discussões por questões simples, que certamente não valem a pena quando comparadas com todo o sofrimento que causam. E o que mais dificulta o fim das Machlokót é que nenhuma das partes envolvidas está disposta a dar o primeiro passo em direção à paz. A honra não nos deixa buscarmos a reconciliação, pois temos medo de parecermos fracos. E esta nossa teimosia acaba nos causando muita dor e sofrimento.
 
O Rav Israel Meir HaCohen (Bielorússia, 1838 – Polônia, 1933), mais conhecido como Chafetz Chaim, exemplifica o efeito destrutivo que a honra pode causar ao ser humano utilizando uma história que aconteceu em sua época. Uma Machlóket iniciou-se entre dois homens por motivos banais, mas alcançou proporções tão absurdas que chegou a ameaçar destruir a família de uma das partes envolvidas, a ponto de a família inteira ficar sob risco de ir para a prisão. Quando a esposa, desesperada, implorou para que seu marido desistisse daquela Machlóket tão destrutiva, ele respondeu: “Estou disposto que minha família inteira vá para a prisão, contanto que eu possa vencer esta discussão!”.
 
É raro o risco de uma Machlóket chegar ao nível de alguém ser fisicamente preso, mas certamente todos aqueles que se envolvem em Machlokót com amigos e familiares acabam entrando em outro tipo de prisão: a prisão emocional. A pessoa se torna incapaz de se livrar do constante ódio e negativismo, e vive sob constante ansiedade pela possibilidade de encontrar com a pessoa com quem está discutindo. Com isso, até as festas familiares se transformam em verdadeiras torturas, cheias de tensão e desconforto. Certamente é muito melhor passar por cima da nossa honra e ativamente iniciar o processo de paz, mesmo quando achamos que o outro lado é que está errado, do que todas as consequências negativas de uma Machlóket.
 
Uma das fontes da Torá da gravidade das Machlokót e das trágicas consequências àqueles que não as evitam é a história de Korach. Em uma disputa com Moshé Rabeinu pelo poder, Korach acabou morrendo em desgraça e causando a morte de centena de pessoas, incluindo sua família. E assim a Torá diz sobre esta disputa: “Nunca mais haverá como Korach e como seus seguidores” (Bamidbar 17:5). A priori poderíamos pensar que a Torá se refere a nunca mais haver uma Machlóket tão violenta e trágica como esta, mas esclarece o Rav Meir Leibush zt”l (Rússia, 1809 – 1879), mais conhecido como Malbim, que na verdade a Torá está nos ensinando outra preciosa lição. A Machlóket de Korach e Moshé teve uma singularidade que nunca mais ocorrerá em nenhuma outra Machlóket da história: o fato de um dos lados estar 100% certo e o outro lado estar 100% errado. Korach e seus seguidores estavam completamente equivocados em seus argumentos e eram totalmente culpados pelo desenvolvimento da Machlóket. Moshé, ao contrário, agiu de maneira completamente correta e justificável. Isto significa que na prática, se formos realmente sinceros, perceberemos que em qualquer Machlóket que estejamos envolvidos também carregamos alguma parcela de culpa na escalada de ódio e desentendimento, pois a Torá afirmou que nunca mais haveria uma Machlóket onde um dos lados tem 100% da razão. Portanto, o simples fato de uma pessoa pensar que ela está 100% certa já demonstra que ela está errada.
 
Convivemos com pessoas o tempo inteiro, sendo inevitável que surjam conflitos. Quando isto acontece, a pessoa fica diante de duas opções: tentar justificar seu comportamento e, de maneira teimosa e obstinada, se recusar a admitir suas falhas; ou engolir seu orgulho e escolher ser a pessoa “grande” da situação, que dele partirá a tentativa de reconciliação. Muitas questões não são simples e somente podem ser resolvidas com um diálogo sensato e moderado, mas a partir do momento que a pessoa verdadeiramente se comprometeu em buscar a paz, certamente terá sucesso.

Todos os dias, quando terminamos a Amidá (Reza Silenciosa), damos três passos para trás justamente antes das palavras “Aquele que faz a Paz nas alturas, que Ele traga a paz sobre nós”. Isto nos ensina que, se queremos a paz de verdade, devemos começar dando três passos para trás, isto é, sabendo ceder para acabar com a discussão. A pessoa que se recusa a dar alguns passos para trás para chegar a um consenso apenas prolongará a aumentará a amargura na sua vida. Já aquele que aprende a ceder estará se comportando como Avraham Avinu, que fazia tudo o que podia para alcançar a paz. Apenas quando aprendermos a dar os três passos para trás, poderemos chegar a dar os três passos para frente na vida. 

SHABAT SHALOM
 
Rav Efraim Birbojm

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